CONTO: Dieta

 

DIETA

 

— Como foi o final de semana, Edegar? Seguiu a dieta prescrita?

— Não... mas dei uma adaptadinha razoável.

— Hunf... Me conte.

— Churrasco no sábado. A proteína é liberada, certo?

— O problema é o sódio. A carne era magra pelo menos?

— Tirei a gordura da picanha. Mas teve linguicinha. E pão de alho.

— Edegar!

— O jantar foi leve. Comi só a metade de um xis.

— Terrível! E como foi o domingo?

— Restos do churrasco e, à noite, um sushizinho inocente.

— Espero que tenha pedido só sashimi...

— ... e hot?

— Que droga, Edegar! Você não queria emagrecer?

— Mas bebi apenas Coca-Cola Zero, doutor.


Microconto de minha autoria originalmente publicado no livro Sem / Cem palavras, organizado por Cinara Ferreira e Fernanda Melvee, publicado em 2018.

CONTO: Arrependimentos

 

ARREPENDIMENTOS

 

Vivo a iminência da morte. Nesta terrível situação, penso nos meus arrependimentos.

Eles são vários...

Eu deveria ter ficado mais perto da família; jamais tive uma conversa franca com meu pai e meus filhos. Deixei os velhos amigos escorrerem pelas décadas e lamentavelmente não experimentei o sabor de uma grande paixão.

Jamais trabalhei nas coisas que quis. Não terminei os livros que comecei a escrever. Deixei pra lá os meus maiores sonhos.

Mas há um arrependimento maior.

Se eu soubesse que os meus últimos instantes de vida ocorreriam debaixo da terra, enclausurado em um caixão, teria pedido para ser cremado.


Microconto de minha autoria originalmente publicado no livro Sem / Cem palavras, organizado por Cinara Ferreira e Fernanda Melvee, publicado em 2018.

CONTO: Questão de Fragilidade

 

QUESTÃO DE FRAGILIDADE

 

Os alunos repercutiam o final de semana na sala de aula. Menos Carlos. Principal saco de pancadas da escola, levara mais uma surra do padrasto. Eram tantas que até perdeu as contas.

Resolveu descontar em alguém. Se batiam nele porque era frágil, deveria encontrar um coitado que fosse pior. Olhou para Daniel. Este certamente era pior.

Sentou ao seu lado e sacou uma faca.

— Veja isso, cuzão.

Daniel saltou da classe ruidosamente, com a faca enterrada na barriga. Seu blusão branco ficou rosa. Logo começou a gritaria.

E no rosto de Carlos todos viram o sorriso mais puro e genuíno.


Microconto de minha autoria originalmente publicado no livro Sem / Cem palavras, organizado por Cinara Ferreira e Fernanda Melvee, publicado em 2018.

CONTO: Encontro Noturno

 

 

ENCONTRO NOTURNO

 

Estela bateu na minha porta pouco depois da meia-noite. Ela estava fantástica naquele vestido vermelho.

Eu disse: — Senti saudades.

Estela me beijou com os seus lábios carnudos e macios. Tirei a roupa dela. Percorri seu corpo com a minha língua. O perfume ainda era o mesmo. Fizemos amor até o amanhecer.

— Me prometa que foi a última vez – pediu Estela na despedida.

Contudo, retornei ao cemitério dias depois. Recitei do livro das páginas negras algumas palavras em acadiano e cortei minha mão com o canivete. Meu sangue gotejou na sepultura de Estela.

Voltei para casa sabendo que a veria novamente.


Microconto de minha autoria originalmente publicado no livro Sem / Cem palavras, organizado por Cinara Ferreira e Fernanda Melvee, publicado em 2018.

CONTO: A Risada do Bebê

 

A RISADA DO BEBÊ

 

Graci despertou com a risada do bebê. Olhou o relógio. Três da manhã.

O som vinha do quarto ao lado.

— Ouviu isso, Rubens?

Rubens não respondeu, porém, Graci viu que ele estava acordado, com os olhos arregalados.

— É a primeira vez que ele ri.

— Eu sei.

Graci aguardou um pouco, então fechou os olhos.

O bebê voltou a rir. Uma contagiante gargalhada.

— É o nosso filho — insistiu Graci. — Preciso ir vê-lo.

— Tem certeza?

Na verdade, Graci não queria ir até o quarto. A ideia do que poderia encontrar a aterrorizava.

Não fazia nem um mês que o bebê havia morrido.


Microconto de minha autoria originalmente publicado no livro Sem / Cem palavras, organizado por Cinara Ferreira e Fernanda Melvee, publicado em 2018